2004-01-12

"...são só mais 10 cêntimos a cada um!" Parte I

Um grupo indiferenciado de amigos vai jantar fora. Escolhido o restaurante, a mesa e as cadeiras, sentam-se ordeiramente. Passados uns segundos são municiados com o menu e uma colecção de entradas. Aceitam também o convite de encomendar as bebidas. Passados uns minutos escolhem os pratos sem restrições. Por esta altura, dos 10 amigos iniciais, 8 provaram as entradas, 6 pediram vinho, 2 pediram um refrigerante e os outros 2 água. Os pratos dividiram-se numa de duas categorias: barato e caro. Foram pedidos 5 pratos baratos e 5 pratos caros. A refeição começa e a dado momento, um dos amigos decide pedir um ovo estrelado para acompanhar o seu prato. Percebendo o desconforto criado na mesa objecta: “São só mais 10 cêntimos a cada um!...”
Convém explicar antes de mais que é costumeiro entre amigos dividir-se igualmente entre todos a despesa final de um jantar. Um hábito que se terá generalizado provavelmente por comodidade – para que não se peçam tantas contas quantas as pessoas, e para que não se tenham de pesar os consumos individuais das entradas e das bebidas comuns. Acredito que entre amigos não faça confusão equilibrar os consumos à média, uma vez que a ocasião é mais que uma simples refeição, é um momento que oferece a oportunidade de se conviver enquanto se goza uma refeição.

O exemplo pretende explorar até que ponto uma filosofia liberal se torna justa numa comunidade de iguais para iguais. Invocar-se-ão autores numa pequena viagem pelo programa da disciplina de Ciência Política deste semestre académico.
Antes de mais, porque é que o jantar de amigos se pode comparar a uma comunidade? Bom… é um conjunto de pessoas com interesses individuais que pontualmente se interessam num bem comum. Os interesses individuais são os benefícios da troca em mercado livre, de dinheiro (que deriva directamente do trabalho, de rendimentos ou de uma herança – propriedade de cada um portanto) por bem estar. Por bem estar, entendo a variedade de ofertas que o restaurante tinha à disposição, dos consumíveis ao usufruto do espaço. Por interesse colectivo entendo o benefício que cada um vai retirar da companhia (e convívio) dos seus amigos e respectiva envolvência social. Estas definições são uma simplificação da extensão de benefícios percebidos e respectivas utilidades, e dos próprios interesses, mas servem o propósito do exemplo.
Os benefícios mencionados implicam custos. Vou entender custos num sentido muito estrito – o que se paga em unidades monetárias para atingir o benefício. Abandono portanto o custo de oportunidade de um determinado amigo não poder estar naquele momento no cinema ou a ler um livro. O jantar era a actividade da qual eles extraíram a maior utilidade para o seu tempo naquele dia.

Posso agora começar a análise do episódio em si. Começo com um passo um bocadinho arriscado: Será legítimo explorar a indignação de um ou mais amigos com o abuso de um terceiro, tendo em conta que todos conheciam as regras antes do jantar começar? Afinal, não se combinaram restrições específicas às entradas, bebidas ou jantar de cada um – faz sentido que alguém se queixe por causa de um ovo? Eu penso que sim. Se o ovo parece ridículo, podemos facilmente substitui-lo por qualquer outra extravagância: um digestivo caro, uma sobremesa mais pesada (ou mais do que uma), um copo de Champanhe… Aceito portanto que existe um limite a partir do qual alguém que contribui para o interesse colectivo se possa indignar com um gasto marginal, mesmo que custe “só mais 10 cêntimos a cada um”, e por conseguinte, a si mesmo. Vou também desprezar o factor amizade neste exemplo concreto, até porque me parece pacífico que isto aconteceria em qualquer grupo de amigos com recursos limitados para despender, por mais amigos que fossem, e por melhor vontade que tivessem. Outro factor que desprezo é a inépcia causada por orgulho – “Não mostrar indignação por pudor, por sentir que cria uma cisão pouco amigável, por vergonha de parecer egoísta ou avarento.” Se neste grupo em particular todos padecessem desta inércia, com certeza que no grupo ao lado haveria pelo menos um amigo que a venceria. Também isto é passível de uma análise custo-benefício, mas divirjo.

Será então razoável numa comunidade de interesses colectivos e individuais, cobrar ao colectivo para satisfazer uma necessidade/benefício individual? Por regra parece-me evidente que não – Se valorizarmos o princípio de podermos dispor da nossa propriedade, e escolher livremente o que é do nosso interesse. Talvez fosse interessante voltar ao conceito de comunidade de iguais para iguais. O que é isso afinal? Gostava que se entendesse como um conjunto de indivíduos iguais em direitos e faculdade de escolher e providenciar pelo seu interesse.
É uma posição liberal. Assente num “estado” mínimo que assegure segurança e justiça, entendida pelo destilar das interacções entre pessoas no passado. A ordem espontânea de Hayek. Qualquer coisa nos antípodas do totalitarismo da República de Platão, a Ilha da Utopia de Thomas Moore, ou o Comunismo de Marx. Para estes, uma comunidade deve funcionar como um colectivo, onde a propriedade individual é desprezada. Nestes regimes, imagina-se uma sociedade organizada como o paladino da perfeição social, o nirvana na terra. A iniciativa privada é substituída pelo objectivo da organização, que pacificamente dispõe dos seus cidadãos trabalhando nos postos definidos. É na verdade um pouco mais complexo, mas pretende-se que haja igualdade nas liberdades, entendida de uma forma positiva (Isaiah Berlin distinguia liberdade positiva de liberdade negativa, sendo a primeira ‘liberdade para’ e a segunda ‘liberdade de’ fazer algo. Ter liberdade positiva implica a existência de meios que permitam determinado acto. Ter liberdade negativa implica apenas que o acto não é proibido por lei). Ora, essa liberdade, se por um lado pode parecer generosa, por outro é absolutamente castradora por um motivo intuitivo em qualquer economia – Os recursos são limitados. Sendo impossível permitir a todos ‘liberdade para’ proíbe-se a todos ‘liberdade de’.