2004-01-13

"...são só mais 10 cêntimos a cada um!" II

Mas entre o liberalismo de Hayek e o comunismo de Marx não poderá estar a virtude? É precisamente o caso que vivemos nas democracias ocidentais. Existe mercado. Existe a ‘quase’-livre troca de trabalho e capital. Existe a propriedade privada (tirando o que é coercivamente tributado). Existe um estado com funções de proteger a segurança e a justiça na comunidade… Por outro lado também existe redistribuição e intervenção directa e indirecta no mercado. Existe intervenção no fornecimento de interesses básicos como a saúde e a educação. O estado segura o rendimento dos desempregados e dos aposentados. O estado é responsável pelo desenho e manutenção das obras públicas. O estado é regulador de licenças várias, de monopólios institucionais e da concorrência. O estado toma como sua a responsabilidade do planeamento da agricultura, das pescas e da cultura. O estado toma como sua a responsabilidade do avanço científico entre outros… Por cada uma destas responsabilidades sussurra-nos “…são só mais 10 cêntimos a cada um!”. Implicitamente existe a convicção de que o colectivo vai usufruir de um efeito multiplicador na economia (Keynes). De que se vão suprir lacunas que o mercado nunca resolveria. Os exemplos são vários: a Expo 98 e a indústria militar Americana servem o multiplicador; as estradas e os hospitais servem para as lacunas. A discussão económica podia levar-nos muito longe mas podemos atalhar com alguns contra-exemplos: Henry Ford e a indústria automóvel como exemplo de um multiplicador de iniciativa privada; os hospitais privados, as auto-estradas e a Aspirina como supressores de necessidades gerais de iniciativa privada também. Não existe qualquer razão para crer que os investimentos do estado geram melhores frutos que os investimentos dos privados, ou que produzam mais e melhores externalidades positivas – pelo contrário, produzem isso sim, mais externalidades negativas. São exemplo disso a imposição de um castigo aos mercados e particulares prósperos, e a perda social derivada da tributação sobre o consumo. Essa perda é evidente porquanto impede um produtor de vender o seu bem ou serviço a um preço menor, e o consumidor a comprar tanto quanto gostaria. Depois há toda a pedagogia associada – o desincentivo ao produtivo de ser produtivo, e o desincentivo ao improdutivo a ser produtivo! Existe uma parte da sociedade que acaba por ser a locomotiva de todo o sistema, que assume todos os riscos e encargos. Seja pelo longo e laborioso processo de tentativa e erro de identificar necessidades e fornecê-las de uma forma apelativa, seja pela forma como vê esse esforço ser canibalizado pela própria sociedade para alimentar os vagões da retaguarda.
Todo o processo é redutor também pela dimensão e multiplicidade de áreas de intervenção do estado. Onde o estado está, em regra um particular não pode oferecer uma alternativa. Alternativa essa que seria escrupulosa e impiedosamente escrutinada pelo mercado – coisa que só muito marginalmente se pode fazer ao ser o estado a fornecer o serviço. Até porque este primeiro cobra o serviço – haja ou não necessidade dele – e só depois o presta com a qualidade de quem tem muito pouco a provar salvo pontuais excepções.

Existe nobreza no propósito de assegurar que todos tenham direito à saúde, à protecção contra a fome e o frio, e ao prevalecimento da sua própria dignidade – mas isso consegue-se com a safety net invocada por Hayek. Essa segurança é fundamental e implica alguma tributação, mas seria muito raras vezes recorrida se não passasse disso – até porque não é do interesse de ninguém viver satisfazendo apenas a fome, a saúde e o conforto físico. Por outro lado, isto define um nível de prestação de cuidados mínimos, não devia caber ao estado mais que isto. Existe uma barreira de protecção contra o falhanço muito mais poderosa e próxima que é a família. Havendo um mínimo de moral familiar e sentido de self-preservation, é do interesse da família zelar pelos seus – é afinal, da sua perpetuidade que se trata. Este é um instinto difundido por todas as espécies vivas conhecidas, da bactéria à sequóia, passando por toda a vida animal e vegetal. A lei da natureza exerce uma influência superior que define o nosso bem-estar e sobrevivência. A regra é essa. A ordem espontânea de Hayek e a sociedade aberta de Popper contemplam essa realidade. Existem excepções à regra. Mas não será um disparate desenhar um sistema em função do que corre mal?