2004-02-09

Amarga alegria

Ontem, enquanto ajudava um amigo numas bricolages fiz um apreciável corte no dedo. Não vou entrar em pormenores mas sangrava como deve ser. Como macho, que gosto de parecer, agarro num bocado de papel e embrulho despreocupadamente à volta da ferida. O meu amigo queria demaiar mas eu nao deixei. O dia passou-se e a ferida não cicatrizou. A minha mãe obrigou-me a ir ao hospital e lá fui eu resignado, com uma Exame debaixo do braço e a mão bem elevada para não sujar os estofos em pele do carro do meu pai. O meu último comentário foi: "provavelmente esta revista não vai chegar..." mas não quis arriscar levar um livro que certamente sujaria de sangue.
Chegado ao Hospital, e apresentando o meu BI a senhora já sabia tudo sobre mim. Cumprimentou-me e mandou-me imediatamente para uma sala de tratamento (reservado a pacientes a sangrar ou necessitados de cuidados urgentes. Tive alguma vergonha de apresentar só um cortezinho no dedo mas resignei-me e lá me fizeram um pensinho enquanto nao fazia a triagem. Feito o penso o enfermeiro indicou-me um segurança que me levou até à primeira sala de espera. Demorei 2 minutos a ser chamado para a triagem, tanto que não deu tempo de pedir para consultarem o meu livro de vacinas em casa. Médico muito simpatico - duas perguntas - Por favor dirija-se à pequena cirurgia e faça esta vacina para o tétano.
Outro segurança mostra-me o caminho. Espero 5 minutos e sou de novo chamado. Pelo caminho, agradável conversa com uma enfermeira galega que me apresenta o médico que me vai suturar, tambem galego. Todos muito simpáticos e prestáveis. As instalações bem iluminadas e limpas, o tratamento sempre cordial e afável.
Leve anestesia que mais uma vez me envergonhou e sutura rápida. Pensinho. Por favor dirija-se aquela sala para fazer uma injecção. Mais 5 minutos e sou vacinado. Passam-me um papelinho para mudar o penso e tirar os pontos e mandam-me embora.
Não consegui ler um artigozinho da exame. Não consegui dissecar uma pessoazinha da sala de espera. Não consegui apanhar uma cena da telenovela. Não se proporcionou mandar uma mensagem escrita para a mulher e projecto de filho.
Impressionante... É tudo mentira. A triagem funcionou. O tratamento foi rápido. Não andei a pappear daqui para ali sem propósito. Não tive de pagar um tostão de taxa moderadora. O serviço público funcionou! Aliás... para mim as idas ao hospital, que me lembre, sempre funcionaram lindamente - sem esperas, sem stress - o oposto do que todos os amigos e conhecidos contam. Ora, eu não sou especialmente bonito ou simpático que justifique esta diferença de tratamento... o que me distingue talvez é ser dador de sangue. Realmente costumo ser tratado como um rei...
Por isso é que lhe chamo a amarga alegria. O meu pendor liberal abomina o serviço publico que não esteja directamente ligado com a segurança e com a justiça. No meu ver, os outros serviços deviam ser comprados individualmente seguindo as leis do mercado. Não penso isto por estar traumatizado com o serviço público (a minha experiencia com os hospitais não é de todo má), mas acredito que seria muito mais eficiente de outra forma. Já com a escola, com as obras publicas, com a intervenção económica a minha experiencia é traumatizante, e não há maneira do estado acertar se não ficar sossegado no seu cantinho a aprender como se faz.
O dedo doi um bocadinho, mas doi muito mais a pornografia de impostos que vou ter de pagar em troca de tão pouco...