2004-02-13

Vento na Cabeça

O que é que um portugês sem nada para fazer, um centro de saúde e uma biblioteca têm em comum?
Aparentemente nada.
Post rápido para libertar um bocadinho de stress...

Dou comigo num centro de saúde para mudar um penso. Tenho Médis e ocorre-me reclamar os meus direitos, mas concedo que no centro de saúde terei muito mais tempo para ler o meu livro e para cobrar os impostos disparatados do ano passado. Sento-me no meio de 8 idosos com as suas vacinas na mão ou os seus lencinhos do catarro. Tenho admiração pelas pessoas mais velhas... principalmente quando tiveram vidas ricas ou quando mostram grande vontade de continuar a viver. Desta vez não encontrei nenhuma destas características e fiz um grande esforço para fechar a minha ouvidura e concentrar-me no brilhante Lodge. Um esforço escusado com o berreiro que ia naquela sala discutindo reformas, filhos, lei e costumes. Não havia uma posição com cinco minutos de reflexão estruturada ou baseada na mais leve realidade factual. Devaneios e disparate. Diz isto o infante, riam-se à vontade... mas a estória é minha e eu conto-a como me apetecer.
O tempo passou e consegui criar antipatia com todos eles que apesar de puxarem por mim não levaram nada. Costumo ser simpático e cordato sempre que posso, mas naquele momento seria demasiado violento concordar ou não concordar com algum deles. Até que a dado momento chega uma senhora também idosa, que com ordens da médica se dirige directamente à porta da enfermeira e lhe entrega uma folha. Antes de a enfermeira vir à porta já os meus vizinhos bufavam disparates e queixumes, ignorando por inteiro que aquela senhora podia efectivamente ter um caso mais urgente que as suas vacinas (e na verdade tinha mesmo, tanto que ainda tinha de chegar a tempo de voltar a ser consultada e estávamos perto da hora de saída da médica). A enfermeira manda a senhora entrar, parece que lhe aplica umas gotas e manda-a esperar pelo resto do tratamento de aerosol. A máquina estava ocupada com uma outra pessoa e não havia mais ninguem à espera para esse tratamento. Isso ficou claro nos primeiros 30 segundos de conversa, o que não impediu uma selvagem discussão de todos contra a senhora (que só fez o que lhe madaram...). Um dos atacantes era especialmente ruim e não tinha um pingo de educação ou sensibilidade no seu avantajado corpo.
Não conseguia ler o livro com o barulho. Não queria entrar na conversa por me faltar capacidade e clarividência para chegar a tão pequenas mentes. Não conseguia compreender como é que se chega àquela idade com tão pouco nexo e se consegue manter tanta lucidez para se ser mau.
Ocorre-me a dada altura a desculpa de toda a estupidez - "provavelmente têm muito pouco que fazer... preocupam-se com o que não devem. Havendo público... Deus permita que se façam ouvir e que fiquem com uma estória para contar aos compadres amanhã à tardinha durante a sueca."
Fiquei revoltado com a falta de civismo. Não tanto com a perturbação da minha leitura. Que pena não terem todos uma cópia do meu livro para viajarem dentro da cabeça de um génio que os faria sentir pequeninos perante a grandeza, e não infímos perante a pequenez.

Recentemente abriu a nova Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro que costumo visitar diariamente. Costuma estar cheia de jovens a estudar para os exames do semestre de inverno, pontualmente uma ou outra pessoas de meia idade consultando livros e apontamentos para um estudo académico. Eu vou lá chular tudo o que possa... não é uma biblioteca grande mas tem milhares de livros que nunca li e que quero ler, uma modesta colecção de DVD's e uma pequena amostra da nossa imprensa mais popular. A Biblioteca é muito bonita do ponto de vista arquitectónico e talvez lhe falte um bocadinho de espaço... mas assim como assim eles emprestam tudo o que se queira!

Aposto que se os meus camaradas de espera passassem de vez em quando pela biblioteca, o episódio não teria acontecido. Ninguem se teria melindrado minimamente e todos virariam naturalmente mais uma página dos seus livros, lamentando quando fosse a sua vez e esperando ansiosamente pelo retomar da leitura.

Com vento na cabeça é natural que a discussão seja o ponto alto de um dia cheio de coisas bonitas.

Para a próxima recorro à Médis.